O interesse do ser humano pela prática de apostas em jogos descende de longa data. Esse cenário atravessa desde tempos remotos da Grécia antiga, onde o que importava era o status da vitória, chegando aos jogos de dados na China, onde se disputavam territórios, aportando-se em Roma, onde, além de bens materiais, era possível apostar a própria liberdade em práticas esportivas da época. Dando-se um salto no tempo, chegamos ao momento em que o próprio Estado, nas suas três esferas de atuação, como é o caso brasileiro, passa a ser um exímio explorador de jogos, especificamente, de azar.
No âmbito da União, a Caixa Econômica Federal explora, de longa data, vários concursos de apostas, com destaque para a conhecidíssima mega-sena. No caso, o apostador necessita escolher entre seis a vinte números em uma cartela com 60 dezenas. Se acertar os seis números sorteados, ganha o prêmio principal, sendo possível receber prêmios acertando de cinco a quatro números. Em 2022, a mega-sena registrou uma arrecadação mais de 10,9 bilhões de reais, de um total de 23,2 bilhões de reais arrecadados com todas as loterias, sendo pagos 8,8 bilhões de reais em prêmios.
Com um histórico de dificuldades de legalização de jogos mantidos por entidades privadas, é bastante nítido que Estado brasileiro não pretende dividir o mercado. Aliás, nem mesmo a União Federal tem interesse em compartilhar o mercado de jogos de apostas com outros entes federados. Nesse sentido, foi necessária a intervenção do Supremo Tribunal Federal, que, com o julgamento das ADPFs - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – de nº 492 e 493, julgada em 2020, definira que a competência para legislar sobre loterias seria da exclusiva da União, mas que as competências materiais, para instituir loterias, seria de competência concorrente com Estados e Municípios. A União, no caso, defendia um “absolutismo lotérico”, transformando-se na grande Las Vegas do Brasil.
Em que pese recursos de apostas sejam dirigidos às áreas sobre as quais deve o Estado investir, como saúde, por exemplo, não é a finalidade do uso do dinheiro dos apostadores o toque de Midas que torna a loteria estatal mais ou menos digna que o jogo promovido pelo particular, Tanto um quanto outro setor desenvolve atividade geradora de empregos e tributos. A presença do Estado não beatifica nenhuma atividade, ainda mais a algo ligado ao lazer, e que não tem relação com setores culturais, educacionais, fomentadores de prática física, etc.
Um olhar sobre o Código Civil, Lei nº10.406/02, permite entender a resistência estatal na regulamentação e promoção do jogo de apostas por particulares. De forma bastante breve, a matéria é apresentada nos artigos 814 a 817. Mesmo sendo inegável a realidade do jogo e da aposta na vida do brasileiro, desde as versões legais até as ilícitas, o legislador civilista quedou-se divorciado da vontade dos cidadãos. Uma tênue dedicação normativa serviu apenas para retirar força jurígena sobre as obrigações derivadas de contratos de jogos e apostas, conferindo-se status de uma espécie de obrigação natural aos chamados jogos permitidos ou tolerados. Esses não têm aptidão para serem cobrados em juízo, mas, uma vez paga a aposta, esta não será repetível, isto é, não poderá ser reavida pelo apostador, derrotado ou não, salvo se houver prova de dolo, ou se se tratar de jogo efetivado com menor de idade ou interdito. Por outro lado, eximiu-se o mesmo legislador de deliberar qualquer acréscimo à disciplina de jogos legais, compreendidos aqueles com legislação própria, e que legitimam a atuação do Estado na imensa fatia do mercado de apostas.
O jogo tolerado, para atingir a meta de legalidade prevista no diploma civil, deve envolver práticas esportivas, onde estão presentes caracteres que justificam a vitória, como experiência, dedicação, estratégia, etc. O mesmo não serve para acobertar jogos de azar, que assim são conhecidos diante da exploração reiterada por uma das partes, nos quais não a outra parte não consegue influir no resultado final.
Até então, estamos a perceber a existência do jogo e aposta legalizados com legislação própria e explorados pelo Estado, a dos tolerados, constantes no Código Civil. Mas ainda existe uma terceira categoria, e que são os jogos proibidos, ditos ilegais, que são objeto de legislação penal. Símbolo do jogo proibido no Brasil, é o caso do notoriamente conhecido Jogo do Bicho. A sua prática reiterada, diária, sendo consumido por milhares de indivíduos, gera um certo mal-estar social no sentido da ausência de desejo no cumprimento da lei. É uma estrutura tão difundida que a repressão estatal, quando ocorre, é mínima se comparada ao volume de operações geradas pela prática.
Como o mesmo nunca foi legalizado, a sua prática é vista como a contravenção penal estatuída no artigo 50 da Decreto-Lei nº3.688 de 1.941, Lei das Contravenções Penais, que expõe o que segue: “Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele: Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local”. Ainda, consoante o §2o da referida norma, “incorre na pena de multa, de R$2.000,00 (dois mil reais) a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador”. E esse mesmo artigo 50, em seu §3º, estatui o que se consideram como sendo jogos de azar: “a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva”. Em suma, há um interesse do Estado em evitar a exploração econômica dos jogos de azar por parte dos particulares, embora ele, Estado, faça aquilo que condena.
Uma tentativa efêmera de se permitir a prática de jogos de azar, trazendo estes ao mundo da legalidade, foi preenchida pela Lei nº9.615/98, chamada de “Lei Pelé”, que trata sobre o desporto no Brasil, e que trazia consigo a liberação para que entidades desportivas, por si ou por empresa administradora, exercessem a atividade de bingo. A norma foi responsável por uma época de grande proliferação de Casas de Bingo pelo território nacional, explorados por empresas privadas, que deveriam destinar parte do lucro do jogo para entidades desportivas. Nessas casas de apostas, era possível ver máquinas de caça níqueis convivendo com salões onde continuamente eram efetivadas rodadas de bingo. No entanto, a Lei 9.981/00 revogou as regras permissivas do jogo de bingo da lei anterior, de forma que restaram proibidos.
Atualmente, em razão da aprovação na Câmara dos Deputados, no final de fevereiro de 2022, do Projeto de Lei nº442/1991, há uma pretensão de legalização de jogos de azar como cassinos e bingos, e que aguarda análise do Senado. A perspectiva do projeto abre a possibilidade de abertura de cassinos em hotéis, resorts, áreas de turismo, prática de bingo, apostas esportivas, retirando essas atividades da clandestinidade, e da figura da contravenção penal. Além disso, coloca o Estado na posição de um regulador, manifestando-se por meio de agência regulatória própria, que expedirá normas e fará a fiscalização do setor.
Argumentos morais sempre existiram quanto à prática do jogo, e aqui no Brasil a proibição de cassinos fora associada a uma espécie de degeneração social do indivíduo, que abandonaria a família e deveres de chefe da mesma (considerando-se a visão patriarcal que reinou na maior parte do século XX no Brasil), para destinar recursos econômicos ao jogo. Outros falam do problema da ludopatia, o vício em jogos de apostas, o que afetaria até 6% do total de jogadores.
Contudo, se tais problemas são reais, por que o Estado brasileiro é uma grande banca de jogos de loterias? Existe algum argumento técnico, de preferência afetado à psiquiatria, que indique que jogo do bicho, cassino, bingo e outros têm um condão de viciar o apostador, o que não ocorreria com jogos de loteria como mega-sena? Além disso, a realidade é bem mais forte do que a vã pretensão de proibir a prática de jogos de azar por particulares. Os efeitos digitais da pandemia Covid19, patologia que remeteu uma grande parte dos seres humanos a viverem sob viver a internet, intensificou a busca por jogos eletrônicos de azar, como cassinos, bingos e poker. Para piorar as metas de controle de jogos ilegais, tais serviços são oferecidos por sites estrangeiros, que não reconhecem fronteiras físicas, e impossibilita qualquer fiscalização pelo Estado brasileiro, que se veria obrigado a violar a soberania de outras nações, numa cruzada infindável, e que não lograria efeito algum. Ou teria que chegar ao extremo, como outros países ditatoriais, que controlam o acesso dos cidadãos à internet.
Uma pesquisa do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ocorrida entre 2017 e 2018, sobre o consumo das famílias brasileiras, mostrou que o brasileiro gasta mais com apostas em jogos de azar do que com arroz. As pessoas arriscam o alimento diário no afá de tentar receber algum valor que possa lhes completar a renda mensal baixa.
No entanto, há uma fatia de jogos de apostas on line que receberam um toque de legalidade no Brasil. Isso permitiu que diversos players no mercado, com marcas conhecidas, que costumam ocupar espaços de publicidade em campos de futebol e nas mídias em geral, oferecessem produtos variados, que envolvem apenas jogos esportivos, mas até mesmo transmissões ao vivo de jogos com comentaristas conhecidos do público. Como no Brasil o futebol ainda é o esporte número um do gosto popular, cada vez mais os clubes têm gerando parcerias de patrocínios com os fornecedores. Clubes como Atlético-MG (Betano), Atlético-GO (Amuleto Bet), América-MG (Pixbet), Avaí (Pixbet), Botafogo (Blaze), Fluminense (Betano) e São Paulo (Sportsbet.io) tem como patrocinadores do tipo máster, nas respectivas camisas, empresas do setor de apostas, sendo que muitas delas chegam a investir em dois, três, até seis clubes ao mesmo tempo, como forma de garantir visibilidade à marca e incentivar o consumo do serviço. Pode-se dizer que hoje seria impensável um futebol brasileiro com a mesma qualidade de jogadores sem a presença dessas casas de apostas como patrocinadores.
Em 2018, no governo de Michel Temer, tudo indicava que a questão dos jogos de apostas alcançaria um caminho da legitimidade, com a sanção da Lei nº13.756/18. Embora não fosse ainda uma abertura total ou ampla, poderia se imaginar a convivência com uma certa regulamentação das apostas esportivas no Brasil. A referida lei previu como meio possível de aposta a chamada quota fixa. Consoante o art. 29 da referida Lei, resta criada a modalidade “lotérica”, sob a forma de serviço público exclusivo da União, denominada apostas de quota fixa, cuja exploração comercial ocorrerá em todo o território nacional. Em termos práticos, “quota fixa” significa que o apostador sabe quanto vai receber se acertar, e o prêmio já é pré-definido pela empresa de apostas, que calcula a probabilidade de um resultado acontecer.
No entanto, outra situação anômala que o sistema acabou gerando, por falta de regulamentação, que se tributa à ausência de vontade ou coragem política, é o fato de que todas essas empresas de jogos, algumas bastante conhecidas em razão da farta divulgação na mídia, não poderem operar no Brasil como casas de apostas. A Lei nº nº13.756/18 determina que tais fornecedores não tenham pontos de venda físicos no país, e que somente possam operar por meio de sites hospedados em domínios não registrados no Brasil. A grande parte dessas empresas, que atuam no Brasil, tem sede em Malta, Barbados, Gibraltar, entre outros, fazendo com que estes locais onde operem fisicamente fiquem com a tributação. Uma vez sendo regulamentada a norma indicada, a empresa teria que possuir filial ou sede no país, recolhendo tributos, pagando taxa de fiscalização, e obedecendo a outros tramites legais que agregam maior segurança ao serviço.
O apostador deve ser considerado como consumidor, sendo seu status condizente com a tipicidade do artigo 2º, caput do CDC: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. O mesmo está adquirindo e pagando por um serviço de resultado aleatório. O serviço, no caso, é inerente ao lazer. Não se trata de um investimento com certeza de retorno. Aliás, o resultado positivo é algo raro ou remoto de ocorrer em jogos lotéricos. E como consumidor, a vulnerabilidade é sua característica principal, como aponta o artigo 4º, inciso I do diploma consumerista brasileiro.
Ora, se o consumidor, num emaranhado de possibilidades, que vão desde o jogo ilegal ao jogo do Estado, optar pela loteria municipal ou estadual, ele não perde esse status jurídico de vulnerável, e devem lhe ser garantidas as mesmas prerrogativas que teria contratando com empresa privada. Simplesmente proibir jogos de apostas por representarem jogos de azar seria uma atitude cínica de um Estado que explora tais serviços. Por outro lado, regular, restringir e fiscalizar a atividade privada do setor, de forma que a o jogo de aposta não se torne um propulsor de dependências e desagregação familiar, e que garanta lisura, transparência e pagamento de prêmios, tributos, etc, beneficiaria os consumidores-apostadores e também toda a sociedade.
Notas de Rodapé:
1. Vide: <https://einvestidor.estadao.com.br/ultimas/loterias-caixa-bilhoes-apostas-recorde-2022/#:~:text=Em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20aos%20pr%C3%AAmios%20ofertados,R%24%201%2C9%20bilh%C3%A3o Acesso em 12.06.23.
2. TAVARES, Danilo Serra, e CERQUEIRA, Felipe Mello. O PL 442/91 e o futuro dos jogos de azar no Brasil: normas, fiscalização e aplicações de sanções. Vide <https://www.migalhas.com.br/depeso/361771/o-pl-442-91-e-o-futuro-dos-jogos-de-azar-no-brasil>.Acesso em 23.11.2022.
3. Vide: <https://www.revistaencontro.com.br/canal/economia/2022/04/brasileiros-gastam-mais-dinheiro-em-jogos-online-do-que-em-arroz.html>. Acesso em 14 .06.23.
4. Vide: <https://exame.com/casual/todos-os-20-times-da-serie-a-tem-sites-de-apostas-esportivas-como-patrocinadores/>. Acesso em 25.11.22.
5. Sobre vulnerabilidade, sugestão de leitura do nosso SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2012.
CRISTIANO HEINECK SCHMITT é Doutor e Mestre em Direito pela UFRGS, Professor de Direito da PUC-RS, Pós-graduado pela Escola da Magistratura do RS, Secretário-Geral da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB/RS, Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor - BRASILCON, Membro do Ibdcont – Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogado.
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